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Sem-Amor, Sem-Abrigo

Sem-Amor, Sem-Abrigo

02nd July 2021

Começámos o nosso serviço à Cidade com pessoas em situação de sem-abrigo. Pouco ou nada sabíamos sobre as suas necessidades mais profundas, os seus desafios, as melhores formas de as apoiarmos, etc. Mas percebemos logo de início que além das necessidades materiais evidentes - tecto, comida, roupa, etc. - havia outras porventura menos visíveis mas tão ou mais importantes, desde logo a necessidade de pertença. Fomos criados para a pertença, para a comunidade, para a partilha.

E quando nos sentimos desvalorizados, lateralizados, invisíveis, como é o caso de pessoas em situações de exclusão social, naturalmente definhamos. Pelo contrário, quando nos sentimos vistos, reconhecidos, acolhidos, nós florescemos. Por isso desde os primeiros tempos privilegiámos a criação de espaços e momentos de pertença, de inclusão, de reconhecimento e valorização de cada pessoa, fosse sem-abrigo ou com-abrigo.

A certo momento soubemos do livro “Sem Amor, Sem Abrigo”, de António Bento e Elias Barreto. Lemos sobre o mesmo (cuja impressão está esgotada há muito tempo) que a esmagadora maioria dos homens em situação de sem-abrigo com doença mental tinham em comum ter iniciado o seu percurso para a exclusão e para a rua (e para a doença mental) cedo na vida, de facto na sua infância, em contextos onde eram “sem-amor”.

Para nós, que nos dedicávamos cada vez mais a acompanhar pessoas nestas situações, essa informação logo nos levou a questionar: será que podemos fazer algo mais na origem para evitar que muitas cheguem às ruas, onde é tão difícil ajudar a reverter percursos, traumas, desesperanças? Será que poderemos fazer algo mais para para evitar que crianças e jovens cedo se afastem das outras pessoas da sua geração, se vejam excluídas da participação cidadã e da realização do seu potencial humano, acabando na marginalidade, nos consumos, na rua e na doença mental?

E foi aí que fomos à procura de um projecto de “intervenção precoce”, que tínhamos ouvido falar. Encetámos o contacto com a TLG, visitámos a sua sede e participámos numa formação de coaches, e considerámos a sua adopção em Portugal.

A TLG, no Reino Unido, confiou em nós para a adaptação do “Early Intervention” no nosso país (a sua primeira experiência no estrangeiro). Demos-lhe então o nome mais contextualizado de “Crescer com Amigos”, recrutámos uma educadora (Joana Jacinto Gama) que logo nos incentivou a recrutar uma psicóloga (Sarah Monte Alto Moura), candidatámos-nos a financiamentos da Deloitte e da Câmara Municipal de Lisboa, e com muito trabalho e expectativa o Crescer com Amigos ganhou vento nas velas e não mais parou de navegar na ajuda a crianças em risco, apoiando-as nas suas lutas e na construção de um percurso de vida de pertença e esperança.

O resto é a história, são as histórias que este blog vai contando e que muitos já conhecem, apreciam e apoiam.

Esta ideia de “Sem Amor, Sem Abrigo” é algo que todos precisamos (re)conhecer, manter na mente e coração, estar dispostos a contrariar, começando em casa, com filhos e pais e avós, com amigos, colegas e vizinhos, e na Cidade com as pessoas com quem nos cruzamos de forma mais ou menos acidental. “Sem-amor” é um desafio social-humanitário e espiritual que está nas nossas mãos e ao alcance do nosso olhar, do nosso falar, do nosso agir…

Muitas vezes temos passado pelo desconforto de não saber o que fazer quando somos abordados na rua por alguém que nos pede ajuda, ou quando vemos alguém numa situação de óbvia necessidade. Seja qual for a nossa resposta - e muitos não chegámos ainda a estabelecer uma forma padronizada de resposta - comecemos por nos perguntar como poderemos expressar amor de forma personalizada (haverá outra forma de expressar amor?!). Tenhamos em conta que cada pessoa, cada situação requer uma resposta nova, personalizada, quer dentro de nós, quer na relação com o outro.

Li em tempos que “o amor não é conveniente; conveniência é para os supermercados.” Não sendo a frase mais poética ou mais bem construída não deixa de ser uma verdade que nos interpela. A busca tantas vezes obcecada pela nossa conveniência muitas vezes exclui o nosso próximo. O amor exige intencionalidade, por vezes algum sacrifício, sendo o mais apreciado e necessário o da auto-doação. Isso pode e deve acontecer cada dia em nossa casa, mas também na nossa Cidade. Costumamos dizer a quem faz voluntariado que este não é uma mera doação de tempo, pois o tempo não é algo abstracto: o tempo dado é vida dada, é uma porção de vida partilhada, é algo que entregamos e deixa de ser exclusivamente nosso.

O voluntariado é uma escola da dádiva, da generosidade, do melhor da nossa humanidade, criada à imagem e semelhança de um Deus que dá e que se dá. Por isso a sua prática é abençoadora, desde logo de quem a pratica, mas também de quem a recebe. É um caminho certo e seguro para construir gente “com-Abrigo” a partir do exercício do “com-Amor”.

E é por aí que nos propomos contrariar a lógica do “sem-amor, sem-abrigo”, lutando preventivamente contra a exclusão no Crescer com Amigos, e reactivamente naqueles à nossa volta a quem somos enviados a abrigar, em amor, pelo Amor.

- Alfredo Abreu, Serve the City

Alfredo Abreu

Alfredo Abreu

Alfredo Abreu é casado com a Rita e têm 4 filhos. É presidente da direcção da Serve the City e conselheiro da Board do Crescer com Amigos.

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