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Três maneiras de como os traumas infantis podem afetar a idade adulta 

Três maneiras de como os traumas infantis podem afetar a idade adulta 

08th November 2022

Este blog baseia-se no artigo escrito por Jade Wu, psicóloga clínica de saúde e apresentadora do podcast Savvy Psychologist para a revista Psychology Today a 23/10/19: “Three Ways Childhood Trauma Affects Adulthood”.


Os traumas infantis complexos são subtis, mas podem ter consequências a longo prazo.

Quando pensamos nos nossos primeiros anos, o que vem à mente? O que recordas? Pode ser algo parecido a mergulhar numa tigela de melancia fresca num dia quente de verão, rir enquanto os teus pais te empurram num baloiço num parque, andar de bicicleta pelo quarteirão com os teus irmãos ou noite aconchegante de cinema no inverno com a família inteira. Ou poderás estar entre as muitas pessoas que não têm estas lindas recordações da infância ou que têm lembranças mais sombrias que atrapalham as mais felizes.

O que é o Trauma Complexo? A maioria de nós pode reconhecer a aparência de um trauma. Quando pensamos em trauma, frequentemente pensamos em eventos importantes que mudam a nossa vida. Pensamos em casos horríveis de agressão sexual, acidentes de carro, desastres naturais e guerra - eventos que dividem a vida de uma pessoa em "o antes" e "o depois". Essas são as experiências pelas quais as vítimas costumam ser atormentadas através de flashbacks e pesadelos.

O que não pensamos ou falamos muito é algo chamado de trauma complexo. O trauma complexo é um tipo de experiência infantil subtil, uma espécie de "queimar lentamente", que afeta uma pessoa com a mesma intensidade. O trauma complexo é difícil de localizar, de descrever e de recordar. Podem aparecer como momentos “instantâneos” da infância, como esperar na janela tarde, à noite pelo regresso de um pai frequentemente ausente. Podem aparecer como um sentimento geral de desconfiança ou de distanciamento, um sentimento que se infiltra nos relacionamentos adultos da pessoa, mesmo quando esses relacionamentos são com pessoas que não são de todo prejudiciais.

O trauma complexo nem sempre está relacionado com o que aconteceu a uma pessoa; é também sobre o que não aconteceu. Talvez a pessoa não tenha recebido o respeito básico ou um sentido de confiabilidade dos adultos da sua vida.

A Lista de ACE, as Experiências Adversas da Infância

Jade Wu é psicóloga clínica de saúde e apresentadora do podcast Savvy Psychologist. Ela é especializada em ajudar pessoas com problemas de sono e transtornos de ansiedade. Refere que ao longo dos seus anos de prática clínica, aprendeu algumas coisas sobre trauma que não estavam nos livros didáticos. Há algo que realmente se destaca - como é comum.

No artigo que escreve para a revista Psychology Today, Jade refere que tinha ouvido falar sobre a elevada prevalência de traumas na infância em estudos famosos como o estudo de Eventos Adversos na Infância (ACE). ACE foi uma pesquisa com mais de 17.000 pessoas entre os anos de 1995 e 1997. Os participantes realizaram exames físicos e preencheram pesquisas sobre suas experiências de infância, bem como seu estado atual de saúde e comportamento.

Os 10 itens da pesquisa incluíram perguntas sobre abuso físico e sexual, bem como:

• Um dos pais ou um adulto mais velho na casa costumava insultá-lo ou humilhá-lo?

•Se costumava sentir que na sua família não cuidavam uns dos outros, não se sentiam próximos ou não se apoiavam uns nos outros?

•Se residia com alguém que bebia ou era alcoólico ou que que recorria a drogas ilícitas?

Nesta enorme amostra de participantes, 64% das pessoas escolheram pelo menos um item.

Um total de 12,5% das pessoas experimentaram quatro ou mais destes itens. Isto é imenso- quatro ou mais desses itens incluem por exemplo profunda negligência e vitimização de uma criança, alguém que está a tentando desenvolver um sentido de identidade num mundo onde as pessoas de quem mais depende são as que mais a prejudicam. Teríamos esta noção, de que uma em cada oito pessoas teve experiências semelhantes na sua infância?

Os traumas são muito mais do que pesadelos e flashbacks - traumas de infância complexos afetam todo o corpo e a mente. Os efeitos do trauma podem ser difíceis de reconhecer. Neste artigo da revista Psychology Today, Jade refere três efeitos que frequentemente não discutimos.

Efeito 1: O trauma pode penetrar profundamente no corpo, contribuindo para o estabelecimento de doenças crónicas.

Traumas infantis complexos podem causar cicatrizes físicas, além de psicológicas. Desde o lançamento do primeiro estudo ACEs, que mostrou como os eventos negativos na infância são comuns, os cientistas de diversas áreas da saúde estudaram como esses eventos afetam a saúde a longo prazo.

Um estudo de 2014 da Escola de Medicina da Virgínia Commonwealth University descobriu que ter um histórico de ACEs, especialmente a exploração sexual, estava associado a uma taxa mais alta de diagnóstico de cancro. Uma revisão de 155 estudos em 2019 confirmou a ligação entre ACEs e o risco de cancro, mostrando que esta ligação é provável porque aqueles que aqueles que viveram experiências adversas na infância (ACEs) eram mais propensos à obesidade e ao uso problemático de álcool e tabaco. Também parecem existir evidências crescentes de uma ligação entre os ACEs e outras doenças como no coração, fígado, pulmão, doenças autoimunes e dores de cabeça crónicas.

Efeito 2: O trauma pode ser prejudicial à relação de uma pessoa com sua própria sexualidade.

Crescer num ambiente seguro e atencioso permite que a criança aprenda acerca do seu próprio corpo e sexualidade de uma forma saudável e confiante. Mas não ter conhecimentos ou a ausência de modelos positivos na área sexual e dos relacionamentos, pode levar a resultados negativos para os mais jovens.

Um estudo com quase 10.000 adultos referido no mesmo artigo, referiu que quanto mais ACEs as crianças e jovens tinham, maior a probabilidade de virem a ter uma doença sexualmente transmissível. Apenas 7 por cento dos homens sem ACEs alguma vez tiveram uma DST, mas 39 por cento dos homens com sete ACEs tiveram uma DST. A diferença é igualmente estonteante para as mulheres. Descobriu-se que as mulheres com ACEs envolvem-se em comportamentos sexualmente mais arriscados, como ter até 2,6 vezes mais probabilidade terem relações sexuais, quando achavam que estavam expostas ao HIV. Quando se trata de gravidez na adolescência, também há um vínculo linear. Numa grande amostra da Califórnia, 16% das mulheres sem ACEs engravidaram na adolescência, enquanto essa percentagem aumentou para 53% se tivessem oito ACEs.

Efeito 3: Até mesmo a compreensão de uma pessoa sobre o tempo e a realidade, pode ser distorcida por um trauma complexo.

Como te recordas do teu passado? Fazias planos para o futuro? Todos nós temos a nossa bagagem e os nossos medos, mas aqueles que passaram por traumas complexos literalmente têm buracos no passado e no futuro. Um grande estudo referido por Jade neste artigo, com mais de 5.000 homens e mulheres descobriu que aqueles que apresentavam trauma complexo significativo (pontuação de 5 ou mais ACEs) tinham seis vezes mais probabilidade de ter grandes lacunas de memórias da sua infância, do que aqueles sem ACEs. Ao olhar para o futuro, os jovens com ACEs também veem algo confuso. A falta de pensamento voltado para o futuro é uma característica da depressão, e os pesquisadores descobriram que isso pode levar os adolescentes com ACEs a envolverem-se em comportamentos delinquentes e mais perigosos.

Até o presente pode parecer distante para aqueles que apresentem traumas complexos. A experiência de dissociação às vezes é chamada de “experiência fora do corpo”, em que a pessoa sente como se tivesse saído do seu próprio corpo. A dissociação também pode manifestar-se como insensibilidade à dor, perda do controle muscular ou até mesmo incapacidade de engolir. Aqueles que tiveram um número significativo de ACEs têm maior probabilidade de sofrer dissociação.

O transtorno dissociativo de identidade, às vezes conhecido como “transtorno de personalidade múltipla”, é uma forma extrema e rara de dissociação que ocorre devido a traumas na infância. Isso ocorre quando alguém não consegue manter um senso consistente da sua identidade e parece alternar involuntariamente entre diferentes identidades.

Compreender pode levar à cura

O conhecimento acerca dos efeitos insidiosos e dos efeitos a longo prazo do trauma da infância é extremamente triste. Pode até fazer-nos sentir desesperados. Na verdade, o que é que podemos fazer para desfazer os efeitos do trauma? Como podemos remediar infâncias perdidas e futuros incertos?

É importante conhecer a ligação entre os ACEs e esses sintomas que surgem a longo prazo. Poderá ser útil aos profissionais das áreas da educação e da saúde, de forma a se conseguir prestar mais atenção a traumas complexos em jovens e oferecer intervenções que evitem comportamentos prejudiciais à saúde. Também significa que aqueles que estão em sofrimento poderão ter uma noção melhor do que estão a vivenciar, para que os próprios (e aqueles que estão ao seu redor) possam ver os seus sintomas com mais empatia.

Estes três tipos principais de consequências, de efeitos dos traumas complexos, são apenas a ponta do iceberg. Os “dedos “do trauma alcançam profundamente cada parte do corpo e da mente. Nem todas as pessoas com uma pontuação elevada de ACEs terão uma vida adulta difícil, assim como nem todas as pessoas com baixo ou nenhum ACE terão necessariamente uma vida adulta fácil.

Devemos recordar que os ACEs são uma ferramenta para avaliar o risco.

A Crescer com Amigos existe exatamente para dar apoio incondicional a estas crianças e jovens cujas vidas podem mudar completamente de rumo, porque as pessoas que trabalham, apoiam e suportam a CCA têm este desejo imparável de despertar nas crianças o seu valor intrínseco e o seu potencial ilimitado.  

Desejamos que muitas mais crianças possam ter acesso a lugares e a pessoas que as estimulem a descobrir o seu valor compreendendo que têm capacidades, que podem melhorar, que têm sonhos que podem desenvolver e uma incrível capacidade de amar os outros e ser generosas.

- Marisa Bossa

Marisa Moreira Bossa

Marisa Moreira Bossa

A Marisa é casada com o Nuno e têm 2 filhos. Formada em Psicologia (especialista em psicologia comunitária) e Diretora Executiva da Crescer com Amigos.

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