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Uma oportunidade de semear
04th April 2022
Admito que não é uma história infantil muito conhecida, mas gosto dela particularmente: “Era uma vez uma semente”, de Judith Anderson. O livro é a reprodução de um tempo maravilhoso entre avô e neta com dedos verdes (mão boa para as plantas) que traz sabedoria ao imaginário de uma criança e que, facilmente, podemos aplicar à nossa vida.
A certa altura a menina conta: “o avô diz que as plantas são como nós”. E sem dúvida. É fácil colocar a nossa imaginação a trabalhar e visualizar o processo da semente e transpô-lo para cada um de nós.
Eu sou a filha mais velha de uma mãe solteira. Como a semente, a minha vida foi lançada num bairro de cariz social onde a minha mãe criou duas mulheres rodeada de muitas dificuldades. À nossa volta as histórias de lutas com poucas vitórias reproduziam-se diariamente, mas bastava que houvesse uma ou outra pessoa disponível para cuidar e regar a nossa vida com coisas boas, que era visível a resiliência de filhos e filhas perante pais que davam o seu melhor (mesmo que isso não fosse o suficiente). Quantas plantas sobrevivem com cuidados pontuais?
Eu e a minha irmã crescemos numa casa de renda social com dois quartos onde viviam seis pessoas, só com o salário da minha mãe e a minúscula reforma dos meus avós (a partir de certa altura, claro). Olhando para trás consigo identificar muitos momentos de revolta que me faziam sentir inferior aos meus colegas de escola (em muitos sentidos). Hoje, com um olhar adulto e mais distante, consigo perceber como aquela vida da qual sentia vergonha e, às vezes, medo, me deu ferramentas para quem eu tenho sido e para as tribulações que enfrentamos só por viver. E, tenho a certeza, que muitos que saíram do “bairro” sentem algo muito semelhante. Apesar das dificuldades, as nossas raízes deram lugar a caules fortes capazes de sustentar as tempestades.
Mas tenho a certeza que a realidade de muitos dos meus vizinhos que tiveram de deixar os estudos cedo, por falta de interesse ou pela necessidade financeira, hoje seria diferente se lhes tivesse sido dada uma oportunidade diferente também. Uma árvore cuidada de um pomar é muito mais maravilhosa do que aquela que é deixada à sorte da natureza.
E é aqui que entra o trabalho feito pelas equipas do Crescer com Amigos e todos os que, voluntariamente, se disponibilizam para acompanhar cada criança em cada escola, em parceria com os professores. Cada coach é um “dedo verde” que cuida, rega e alimenta a pequena planta que lhe foi confiada, sabendo que bom fruto pode sair daquela vida.
O abando escolar precoce em Portugal tem vindo a diminuir nos últimos anos o que se torna um indicador muito positivo. No entanto, não consigo ver o projeto do Crescer com Amigos só como uma forma de combater o abandono escolar. Pela minha experiência de vida, o meu olhar diz-me que, mais que isso, está-se a contribuir para estimular o interesse pelo estudo e pela cidadania, confiando nas suas próprias capacidades; mas também se torna num meio de trabalhar a autoconfiança e a determinação.
Contei a minha história que tem o seu “sucesso” pela forma como foi sendo regada e cuidada, mas a questão não se limita à história individual de cada um. Há um impacto nacional se as novas gerações permanecerem desinteressadas do ensino e do progresso escolar. “Portugal continua a debater-se com níveis muito baixos de conclusão do ensino secundário, mesmo entre os jovens, constituindo o baixo nível de qualificações da mão de obra um sério obstáculo ao investimento e ao crescimento da produtividade”, frase do relatório Education at a Glance, da OCDE, de 2019.
O livro da Judith Anderson termina com o avô a explicar à neta que as sementes que se tornam em plantas e em flores geram novas sementes. E o ciclo continua com a ajuda do vento, de um pássaro ou de um dedo verde. Que tu e eu possamos fazer parte deste ciclo como faz o Crescer com Amigos por forma a contribuirmos para gerações de belos pomares perfumados.
- Xana Silva Matos